Ananindeua: Lendas de Encantamento e Ornitológicas

Os trechos dos textos a seguir foram retirados do Livro Imaginário Amazônico (2007), que reúne narrativas dos Livros: Lendas Amazônicas (1916) e Folclore Amazônico (1951) ambos de José Coutinho de Oliveira.
Capa do Livro Imaginário Amazônico

O Navio Fantasma

O Navio Fantasma de 1951 está classificado como Lenda de Encantamento, em que, encantamento é uma expressão utilizada entre o povo amazônico para designar fenômenos em que as mesmas se corporificam.

A história ocorre no Araci um povoado, habitado por agricultores e pescadores, originário de um antigo engenho que entrou em decadência depois do dia 13 de maio, pertencente na época ao município de Ananindeua. Quem narra à história é uma senhora que fala pelos cotovelos identificada como comadre Ana. Veja a seguir a história:

(...) A comadre fala um bocado e os casos que conta são quase sempre interessantes e maravilhosos.

Um dia destes nos apareceu e a conversa recaiu sobre os afundamentos dos nossos navios pelos corsários alemães.

- Não sei, meu compadre, mas serão mesmo os tais submarinos que estão fazendo essa malvadez? Outro dia eu e a comadre Mundica fomos tomar banho. O rio estava bem calmo, a manhã bem clara; já era quase meio-dia.

Nós ainda estávamos conversando, no porto, e eu já tinha me encomendado a S. Bento para me jogar n`água quando a comadre me bateu e me mostrou. Uma bandeirinha vinha subindo lá no meio do rio. Nós esperamos, esperamos, e a bandeirinha vinha sempre subindo, bem devagar, na ponta dum mastro preto.

Daí há pouco começou a aparecer uma cousa como se fosse um casco de navio e brilhava como prata, no sol. Tivemos quase que fechar os olhos. Aquilo ficou ali por um tempo, depois foi outra vez mergulhando, mergulhando, até sumir. Nós nem tomamos mais o nosso banho. Isso é navio ou bicho do fundo, meu compadre da minh`alma? Eu não sei, mas que é que um submarino alemão tem que ver com duas mulheres que vão tomar banho?! Se ele quisesse fazer mal, não ia boiar lá em frente ao Araci, você não acha [,] meu compadre? Que é que tem lá para alemão? (...).

O Xincuã

Chincoã-de-bico-vermelho
A lenda do Xincuã é uma Lenda Ornitológica por se relativa a um pássaro, diferentemente das outras espécies de animais, como o Boto, da Boiaçu, da Mula-sem-cabeça, do lobsimem, etc., pois os animais aqui não se revestem de formas mitológicas, mas simplesmente exercem certas e determinadas influências, como a do Xincuã que é atribuída ao pássaro à natureza de alma penada, caracterizando-o como pássaro agourento.

A lenda do Xincuã foi narrada pela primeira vez no livro Lendas Amazônicas (1916), e a segunda em 1951 em Folclore Amazônico. A história se passa na palhoça da família do senhor Polidoro, que morava com sua esposa Maria suas duas filhas às margens do rio Maguari-Açu às proximidades de Ananindeua. O Velho Polidoro pescava e a mulher com as duas filhas cultivavam um pequeno roçado. Veja a seguir a história:
Chincoã-pequeno 

- Boa tarde, nhá Maria, como vai passando?
- Assim e você?
(...)
- (...) Onde esta seu marido? Foi à pesca?
- Ele! Pois então o senhor não sabe que o Polidoro está deitado há três dias! [?]
- Não sabia. E o que tem ele?
- Sei lá; deu-lhe uma dor no lado e uma febre que o pobre homem não sabe pra donde se virar.
- Algum resfriamento; mande buscar remédio lá em casa.
- Qual? Polidoro está bem mal. Não sei mesmo se ele escapa desta.
- Não desanime, nhá Maria, tenha fé em Deus.
-Fé eu tenho, mas é que sucede cada coisa, que faz a gente imaginar.
(...)
Havia três dias que o Polidoro adoecera e a febre não cedia com os chás e as defumações que a mulher lhe fazia.
(...)
Quando se agrava a doença e as mezinhas (remédios caseiros) foram já repudiadas, os parentes do enfermo tratam, imediatamente, de lhe preparar os últimos momentos e prevenir o enterro.
(...)
É por isso que o caboclo, quando anuncia que uma criatura está doente, em estado grave, usa dizer, com certa ironia simplória: [--] “Fulano está para dar café!”
Em casa do enfermo desenganado reúne-se toda a parentela e aí fica, dias e dias, dormindo e comendo, à espera da morte do doente, a quem faz quarto. De instante em instante, corre o café.
(...)
Na manhã seguinte fui à casa de Polidoro.
Encontrei um mundo de gente lá metido.
(...)
Nhá Maria levantou-se e me fez entrar.
- Você está vendo?! Eu não disse que Polidoro estava mesmo mal?!
- Morreu seu marido? Indaguei surpreendido.
- Não senhor; mas não escapa. (...)
Sentei-me a um banco; nhá Angélica, irmã do doente, veio sentar-se ao meu lado e, depois de um prolongado silêncio, em que só se ouvia, de quando em quando, um gemido do Polidoro e o tamborilar dos dedos dos caboclos nos parapeitos das janelas e nas ombreiras das portas, onde se acostaram, cantou-me que todos os dias, ao amanhecer e ao pôr do sol, um belo xincuã costumava poisar nos galhos do marupaúba, em frente à casa do irmão, e ali ficava horas inteiras a cantar alegremente o seu tê-tê-tê-tê...
Aconteceu, porém, que no dia em que o Polidoro adoeceu, o pássaro deixou de trinar o seu canto de alegria, para entoar o fatídico xin-cu-ã.
Eis o motivo certo da tristeza da cabocla, disse de mim para mim; a superstição garroteando-lhe o espírito!
- Vimos logo, prossegui nhá Angélica, que o Polidoro não levantava desta. O malvado veio avisar-nos que meu irmão esta para morrer.
- E você acredita que um pássaro bruto possa lá saber aquilo que nós ignoramos?
- Ora, se não! Xincuã adivinha quando a gente esta para morrer, porque xincuã é alma penada. Quem sabe, até, se esse um não é a alma do pai ou da mãe do Polidoro! Vosmecê não acredita, mas o fato é que quando uma pessoa adoece e esse malvado vem cantar xincuã e não tê-tê-tê, junto da casa, pode contar...
E lá voltou nhá Maria com a garrafa de meupatia, que veio buscar por descargo de consciência, mas com a certeza de que o Polidoro não escaparia desta. Xincuã não se engana.

Fonte: Oliveira, José Coutinho. Imaginário Amazônico. SILVA, Ana Paula Rebelo; REBELO, Maria Madalena de Oliveira; CORRÊA, Paulo Maués. Belém: Paka-Tatu, 2007.

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